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  • Publicado em: 01 de Jun de 2020

Reflexos da MP 966/2020 na responsabilização penal de agentes públicos

Autores: Cláudio Figueiredo Costa e Raphael Thadeu Carvalho Dias Gaudio

Fonte: https://analise.com/dna/artigos/6794



1. Considerações introdutórias

 

No dia 21 de maio próximo passado, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento da medida cautelar nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 6.421, 6.422, 6.424, 6.425, 6.427, 6.428 e 6.431, todas ajuizadas contra a Medida Provisória nº 966/2020, que dispõe sobre a responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia de COVID-19.

 

Por maioria, a Suprema Corte concedeu em parte a medida cautelar para conferir interpretação conforme a Constituição aos artigos 1º, §1º e 2º da MP 966/2020 e fixou importantes balizas para a responsabilização de agentes públicos por atos praticados durante o estado de calamidade pública, sobretudo na caracterização do “erro grosseiro” previsto na medida provisória.

 

Em que pese a MP 966/2020 disponha expressamente apenas sobre responsabilidade civil e administrativa e o voto vencedor pareça ressalvar a responsabilidade penal do alcance da decisão, é inevitável que o julgamento produza efeitos no âmbito da responsabilização criminal, seja pela aplicação de princípios básicos de direito penal, seja por uma questão de coerência e integridade do ordenamento jurídico.

 

Se, por um lado, a atual pandemia vem carregada de inúmeras incertezas que dificultam sobremaneira o seu enfrentamento, de outro tem sido objeto de indevida avaliação político-partidária, o que não raro faz com que se lance sombras sobre os poucos consensos científicos produzidos até então. A decisão do STF que será objeto do presente trabalho muito bem registrou duas matérias em que este fenômeno tem ocorrido: a necessidade de isolamento social e utilização da cloroquina e hidroxicloroquina como alternativas de tratamento ao COVID-19.

 

O objetivo do presente estudo é traçar algumas diretrizes que possam orientar a responsabilização criminal de agentes públicos pela prática dos atos administrativos referidos na MP 966/2020, considerando os aspectos dogmáticos envolvidos e a decisão do Supremo Tribunal Federal nas ADIs supramencionadas.

 

2. A aplicabilidade da decisão na esfera criminal

 

Ao discorrer sobre o alcance da decisão, o Ministro Luís Roberto Barroso parece afastar a repercussão no âmbito da responsabilidade penal ao afirmar que “propinas, superfaturamento ou favorecimentos indevidos são condutas ilegítimas no contexto da pandemia ou fora dele” e que, portanto, “crime não está protegido por essa Medida Provisória”.

 

Sem questionar a ilegitimidade das condutas especificamente apontadas pelo Ministro, a última expressão se trata de um aforismo sem conteúdo jurídico. Crime não é uma categoria ontológica, mas um conceito para classificar determinadas condutas humanas sobre as quais, por decisão política, recairá uma pena. Daí que se uma norma modifica a estrutura de qualquer um dos elementos que compõem o conceito de crime durante a pandemia, não necessariamente uma conduta que poderia ser considerada criminosa antes da pandemia continuará o sendo.

 

É justamente o que ocorre com a MP 966/2020: a medida estabelece critérios especiais de imputação subjetiva para determinados atos praticados por agentes públicos no combate à pandemia.

 

Se a regra geral é que a tipicidade subjetiva de uma conduta deverá atender às categorias do dolo ou da culpa – esta última, apenas quando a lei expressamente o prever -, a medida provisória estabelece um conceito mais restritivo de culpa, sintetizado na expressão “erro grosseiro”, assim definida como “o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia” (MP 966/2020, art. 2º).

 

Como já dito, seria míope a objeção de que a medida provisória versa exclusivamente sobre a responsabilização “nas esferas civil e administrativa” (MP 966/2020, art. 1º, caput), porque tal perspectiva violaria princípios elementares de direito penal e poderia ocasionar grave incoerência sistemática no ordenamento jurídico.

 

Sabe-se que o direito penal se orienta a partir do princípio da intervenção mínima, segundo o qual o direito penal é a ultima ratio, ou seja, só deverá ser empregado nas hipóteses de lesões significativas dos bens jurídicos mais importantes, quando forem insuficientes as soluções cíveis e administrativas. É a lição de Cezar Roberto Bitencourt:

 

“O princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a prevenção de ataques contra bens jurídicos importantes. Ademais, se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável. Assim, se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas as que devem ser empregadas, e não as penais. Por isso, o Direito Penal deve ser a ultima ratio do sistema normativo, isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do Direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade[1] (grifos nossos).

 

Portanto, admitir que a responsabilização penal dos agentes públicos obedeça a critérios mais abrangentes do que os exigidos para a sua responsabilização civil ou administrativa seria um contrassenso que feriria de morte o princípio da intervenção mínima.

 

Mais do que isso, este raciocínio deformado poderia dar azo a situações aberrantes em que, por um mesmo ato, o agente público pudesse responder criminalmente e, ao mesmo tempo, estivesse resguardado em âmbito cível e administrativo – conclusão impossível diante da constatação de que um dos efeitos da condenação criminal é a obrigação de reparar o dano causado (CP, art. 91, inc. I).

 

Portanto, seja por exigência do princípio da intervenção mínima, seja pela harmonia do ordenamento jurídico, é necessário realizar uma analogia in bonam partem para estender à esfera da responsabilização criminal as normas restritivas de imputação subjetiva constantes da MP 966/2020 e, por consequência, a interpretação conferida a estas normas pelo Supremo Tribunal Federal.

 

3. O “erro grosseiro” na responsabilização criminal

 

No campo da responsabilização criminal, a MP 966/2020 não oferece nenhuma novidade no que diz respeito ao tratamento dos tipos dolosos, que permanecem submetidos à mesma disciplina e aos mesmos critérios dogmáticos anteriormente estabelecidos.

 

 A novidade fica por conta dos tipos culposos, que deverão se submeter ao conceito restritivo de “erro grosseiro”, assim definido “o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia (MP 966/2020, art. 2º).

 

Os trechos grifados representam todos os elementos constitutivos do erro grosseiro. Parece-nos, entretanto, que, para a melhor compreensão do conceito, é útil inverter os termos da definição: trata-se de uma ação ou omissão (pois a conduta é sempre prévia a qualquer valoração), que produza um resultado típico lesivo (sem o qual o fato seria penalmente irrelevante), imputável ao autor pelo elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia com que praticou a conduta (culpa grave), determinado por um erro manifesto, evidente e inescusável (um erro de tipo inescusável, como se verá a seguir).

 

É impossível falar do erro no direito penal sem lembrar da clássica monografia de Francisco de Assis Toledo, que viria a inspirar a reforma da parte geral do Código Penal em 1984. Lecionava o célebre penalista:

 

“Uma noção inicial de erro pode ser colhida nos ensinamentos do civilista italiano Alberto Trabucchi: ‘quando, na determinação da sua vontade, o sujeito age por ignorância, ou por falso conhecimento do estado dos fatos, o ato que disso deriva deve ser valorado de modo diverso do ato levado a cabo com perfeita consciência e conhecimento’. O erro resulta, pois, de uma ausência ou falha de percepção, ou de uma ausência ou falha do raciocínio”[2].

 

No campo da tipicidade subjetiva, o erro que tem relevância é o de tipo, ou seja, “a ignorância ou a falsa representação de qualquer dos elementos constitutivos do tipo penal”[3]. O erro de tipo sempre exclui o dolo, mas, quando vencível – ou inescusável, na terminologia empregada na MP 966/2020 –, permitirá a punição na modalidade culposa, quando a lei expressamente o prever (CP, art. 20), desde que presentes os demais elementos objetivos e subjetivos do tipo de injusto culposo, conforme a sempre atualizada doutrina de Zaffaroni e Batista:

 

“O erro de tipo é vencível (= evitável, inescusável, superável) quando o sujeito, nas circunstâncias concretas em que se deu a ação, empenhando a diligência cabível para inteirar-se da realidade, pudesse adquirir consciência sobre os elementos típicos objetivos. [...] Ressalte-se que a ‘punição por crime culposo’ que a lei ‘permite’ (art. 20, CP) não decorre automaticamente da dupla condição (ser o erro vencível + existir previsão legal expressa de correspondente modalidade culposa), impondo-se a constatação da tipicidade culposa, segundo seus próprios requisitos objetivos e subjetivos”[4].

 

Na definição da MP 966/2020, parece-nos que há desnecessária adjetivação do erro, posto que “manifesto” e “evidente”, neste contexto, são claramente sinônimos que indicam a evitabilidade do erro: por ser manifesto (ou evidente), o erro é inescusável. Importa, pois, que se trate de erro inescusável e que estejam presentes os demais elementos da tipicidade culposa – que, nas hipóteses de incidência da MP 966/2020, deverão evidenciar o descumprimento especialmente grave de um dever objetivo de cuidado (culpa grave).

 

Na definição penal de culpa grave talvez resida a maior dificuldade desta matéria. A dogmática penal majoritária identifica a culpa com a violação de um dever objetivo de cuidado ou, a partir dos estudos de Roxin, com a realização de um risco não permitido. Com a clareza que lhe é peculiar, esclarece Juarez Cirino dos Santos:

 

“A lei penal brasileira define o chamado crime culposo como resultado causado por imprudência, negligência ou imperícia (art. 18 II, CP) – na verdade, uma enumeração de hipóteses de comportamentos culposos herdada do modelo causal, em contradição com os fundamentos metodológicos do modelo final, paradigma teórico da reforma da parte geral do Código Penal. [...] A literatura jurídico-penal contemporânea trabalha com dois critérios principais para definir imprudência: a) o critério fundado no conceito de dever de cuidado, próprio da posição dominante desde WELZEL até JESCHECK/WEIGEND, que define imprudência como lesão do dever de cuidado objetivo exigido; b) o critério fundado no conceito de risco permitido, relacionado à teoria da elevação do risco desenvolvida por- ROXIN, que define imprudência como lesão do risco permitido. As abordagens do fenômeno da imprudência promovidas por esses critérios são complementares e, por isso, a divergência é mais aparente do que real: o conceito de dever de cuidado define imprudência do ponto de vista do autor individual e indica a atitude exigida para situar a conduta nos limites do -risco permitido; o conceito de risco permitido define imprudência do ponto de vista do ordenamento jurídico e indica os limites objetivos que condicionam o dever de cuidado do autor individual”[5] (grifos nossos).

 

Ocorre que o descumprimento de um dever de cuidado ou a violação do risco permitido não são categorias que nos pareça possível graduar sob um critério de intensidade. Não se viola muito ou pouco o dever de cuidado – apenas viola-se ou não. A doutrina civilista, mais habituada ao conceito de culpa grave, tampouco parece oferecer caminhos que aproveitem à responsabilidade penal, ora por defini-la em termos que se assemelhem à definição de culpa simples já exposta[6], ora por equipara-la ao dolo[7].

 

Sem pretensão de esgotar o tema, que não cabe nos estreitos limites do presente trabalho, parece-nos que a “culpa grave” para o direito penal deve ser analisada sob os critérios de representação ou previsibilidade do resultado, ou seja, poderia ser identificada com as categorias doutrinárias da culpa consciente[8] ou da culpa temerária[9].

 

Em síntese, a responsabilização criminal do agente público por erro grosseiro na prática dos atos administrativos previstos na MP 966/2020 ficará adstrita às ações ou omissões das quais decorra um resultado típico lesivo, que o agente poderia e deveria prever, produzido por uma violação do agente a um dever objetivo de cuidado, determinado pela representação equivocada de um elemento do tipo penal.

 

4. O erro grosseiro enquanto inobservância de saber científico

 

No paradigmático julgamento, o Supremo Tribunal Federal conferiu interpretação conforme a Constituição aos artigos 1º, §1º e 2º da MP 966/2020, para esclarecer que configura erro grosseiro o ato administrativo praticado em inobservância a norma técnica ou científica, ou aos princípios constitucionais da prevenção e da precaução. Em seu voto condutor, o Ministro Luís Roberto Barroso sintetizou a tese vencedora:

 

“Firmo as seguintes teses: ‘1. Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à economia, por inobservância: (i) de normas e critérios científicos e técnicos; ou (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção. 2. A autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos’”.

 

É possível extrair da tese vencedora pelo menos duas consequências, que deverão orientar a atuação do agente público. Em primeiro lugar, o administrador público tem o dever, ao tomar decisões, de observar as normas técnicas e científicas aplicáveis à matéria, assim entendidos os critérios fixados por organizações e entidades internacionais reconhecidas pelo Brasil – notadamente a Organização Mundial de Saúde, no combate à COVID-19 –, sob pena de responder pelo resultado lesivo decorrente do ato; quando solicitar parecer ou opinião técnica para embasar sua decisão, deverá exigir que tratem expressamente destas normas.

 

Em segundo lugar, quando os critérios científicos expressarem dúvida sobre a matéria em análise, a decisão do administrador deverá levar em consideração os princípios constitucionais da precaução e da prevenção, de modo a não adotar medida com potencial de causar dano à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à economia quando ausente o mínimo consentimento científico que possa embasar a decisão.

 

Do ponto de vista jurídico-penal, a inobservância de quaisquer desses deveres poderá configurar violação a um dever de cuidado e habilitar a resposta punitiva do Estado quando tal violação produzir um resultado típico lesivo passível de punição a título de culpa.

 

A decisão da Suprema Corte tem o mérito de tornar mais claros os deveres do administrador público, mas vale salientar que os critérios de imputação expostos no tópico anterior bastariam para se concluir pela possibilidade de responsabilização do agente público nesse cenário.

 

Excluídas as hipóteses de dolo, quando o administrador público produz um resultado típico lesivo por ignorar conhecimento científico relevante ou, conhecendo-o, não o observar por descrer na materialização do resultado no caso concreto, via de regra atuará em erro de tipo. Quando disponível o conhecimento científico apto a orientar a decisão e/ou quando conhecidos os possíveis efeitos danosos de um determinado ato, o erro será inescusável e permitirá a responsabilização penal a título de culpa quando a lei assim o prever.

 

No plano concreto do combate ao COVID-19, a leitura do voto vencedor demonstrará que a Suprema Corte tinha em vista conhecimentos científicos específicos que deveriam ser observados pelo administrador público: de um lado, as orientações das entidades internacionais a respeito do isolamento social como forma de controle da pandemia; de outro, o emprego de medicamentos sem eficácia comprovada no tratamento do vírus, notadamente a hidroxicloroquina. Os trechos a seguir são reveladores desta preocupação:

 

Do que acabo de expor, é possível ver que há dois temas centrais na definição de políticas públicas que precisam ser adotadas neste momento de pandemia. O primeiro deles se refere à tensão entre as medidas de distanciamento social necessárias a reduzir o ritmo do contágio pelo COVID-19 e à necessidade de retomar economia brasileira. O isolamento social é a recomendação pacífica das autoridades sanitárias de todo o mundo. Não há alternativa, porque, se muitas pessoas contraírem a doença ao mesmo tempo, o sistema de saúde não suportará. Em alguns lugares, já não está suportando. O isolamento continua a ser a medida recomendada e praticada pelos países onde o combate à doença deu certo, para contornar a ascensão da curva. Deixar o isolamento social só passa a ser uma possibilidade real e praticável, e ainda sim paulatinamente, depois que a curva começa a ser decrescente. Enquanto a curva da doença é ascendente, acabar com o isolamento social, dizem todas as autoridades sanitárias, é nos sujeitarmos ao risco de um genocídio. E aí não há recuperação econômica que possa nos servir se as pessoas já tiverem morrido. [...] O segundo tema central no debate público relacionado à pandemia refere-se à utilização de determinados medicamentos, de eficácia ou segurança ainda controvertidas na comunidade científica, para o combate à enfermidade, como é o caso da hidroxicloroquina. E, aqui, evidentemente, não cabe ao Supremo Tribunal Federal tomar partido nessa disputa. A nós só cabe identificarmos que há controvérsias na comunidade médica. Porém, do que leio na imprensa, majoritariamente há uma postura de que, antes de pesquisas clínicas comprobatórias da eficácia e segurança de um medicamento, esse não deva ser prescrito. Existe uma posição muito visível contrária à difusão de medicamento não suficientemente testado, inclusive pelo risco de efeitos colaterais” (grifos nossos).

 

Também na esfera penal estes são os dados que mais diretamente podem conduzir à responsabilização do agente público no enfrentamento à COVID-19, uma vez que, mal manejadas as informações científicas, há perigo concreto de lesão à vida ou à integridade física de particulares (bens jurídicos que, registre-se, correspondem a tipos penais puníveis na modalidade culposa).

 

É possível vislumbrar, em abstrato, a possibilidade de responsabilização criminal do administrador penitenciário que, mesmo estando ciente da existência de comorbidades em determinado interno, que o fazem integrante do chamado “grupo de risco”, descuida das recomendações científicas sobre higiene e isolamento e o aloca em instalação compartilhada com outros detentos que ostentem sintomas de COVID-19, conduzindo a sua contaminação e consequente morte.

 

Por outro lado, é possível cogitar da responsabilização de um profissional de saúde pelo resultado lesivo que decorra da prescrição de hidroxicloroquina como tratamento à COVID-19, sem colher o consentimento informado do paciente ou induzindo-o a erro quanto à eficácia e, principalmente, quanto aos riscos associados do tratamento, mesmo diante das recentes evidências científicas de que seu uso não é efetivo para este fim e que incrementa o risco de morte e de desenvolvimento de arritmia cardíaca[10].

 

É evidente que o delito não se esgota na imputação e que cada caso concreto deve ser analisado em sua particularidade, sem prejuízo de que seja afastada a responsabilidade penal por outros elementos que compõem o conceito analítico de crime, como a culpabilidade.

 

4. Conclusão

 

A imputação nos tipos de imprudência sempre criou dificuldades para a dogmática penal, mas o cenário de pandemia agrava a insegurança do administrador público pela multiplicação de possibilidades lesivas e pela escassez de informações seguras que possam orientar o enfrentamento da doença.

 

Nesse sentido, a MP 966/2020 teve o mérito de limitar a responsabilização do agente público pelos atos praticados nessa conjuntura, de modo a não conduzir o bom administrador a uma inércia motivada pelo receio de agir e ser responsabilizado pelo resultado.

 

Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal andou bem ao esclarecer que tal limitação não pode se converter em fonte de irresponsabilidade do agente público, que tem o dever de, no mínimo, pautar sua atuação de acordo com o melhor conhecimento científico disponível e observando sempre os princípios constitucionais da precaução e da prevenção.

 

O direito penal não está alheio às disposições da MP 966/2020 e à decisão do Supremo Tribunal Federal, pois estes dados devem também orientar a responsabilização criminal dos agentes públicos pelos mesmos atos administrativos a que refere a medida provisória, sob pena de descaracterização do princípio da intervenção mínima e de incoerência sistemática do ordenamento jurídico.



[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, volume 1, parte geral - 26. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 126.

[2] TOLEDO, Francisco de Assis. O erro no direito penal. – São Paulo: Saraiva, 1977. p. 1.

[3] BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p. 1139.

[4] ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo. et. al. Direito penal brasileiro, segundo volume : teoria do delito : introdução histórica e metodológica, ação e tipicidade. 2. ed. – Rio de Janeiro: Revan, 2010. p. 290.

[5] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. 3. ed. – Curitiba: ICPC, Lumen Juris, 2008. p. 173-174.

[6] “Refere-se a esta modalidade de culpa como ‘culpa crassa, magna, nímia, como se dizia, que tanto pode haver no ato positivo como no negativo, é a culpa ressaltante, a culpa que denuncia descaso, temeridade, falta de cuidados indispensáveis. Quem devia conhecer o alcance do seu ato positivo ou negativo incorre em culpa grave’” (PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado, vol. XXIII, Rio de Janeiro, Borsói, 1958, p. 72).

[7] “No primeiro caso, ou seja, no tocante à culpa lata, ela é equiparável ao dolo: culpa lata dolo comparabitur (D. 11, 6, 1, 1), por ser tão vergonhosa quanto esse, nas não menos conhecidas palavras de Windscheid”. (CARRÁ, Bruno Câmara. A doutrina da tripartição da culpa: uma visão contemporânea. Revista de Direito Civil Contemporâneo-RDCC: Journal of Contemporary Private Law, n. 13, p. 199-228, 2017).

[8] Por todos, CIRINO DOS SANTOS, Juarez, op. cit., p. 192: “A imprudência consciente se configura pela representação da possibilidade de lesão do risco permitido ou do dever de cuidado e pela confiança na evitação do resultado: o autor representa a possibilidade de realização do tipo, mas confia na ausência do resultado lesivo, ou porque subestima o perigo, ou porque superestima a capacidade pessoal, ou porque acredita na sorte”.

[9] “Na culpa temerária o terceiro observador percebe a criação de um perigo proibido tão nitidamente que a exterioridade da conduta lhe aparece como um plano criminal dirigido à produção do resultado; o que, evidentemente, para que exista culpa, não pode confirmar-se subjetivamente. Existindo dominabilidade e descartado o dolo (direto ou eventual), teremos culpa temerária” (ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo. et. al., op. cit., p. 325).

[10] G1. Estudo com 96 mil pacientes não encontra benefício de uso de cloroquina contra Covid-19 e detecta risco de arritmia cardíaca. Disponível em: < https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/05/22/estudo-com-mais-de-90-mil-pacientes-mostra-que-hidroxicloroquina-nao-e-eficiente-contra-a-covid-19-e-pode-causar-arritmia-cardiaca.ghtml>. Acesso em 24.05.2020.