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  • Publicado em: 31 de May de 2017

A irrelevância da classificação jurídica em hipóteses de coisa julgada

A categoria jurídico-processual da coisa julgada tem na ordem jurídica republicana importância capital. Tourinho Filho analisa com detalhamento e profundidade que: “o instituto da coisa julgada encontra seu fundamento na segurança e estabilidade que a ordem jurídica impõe.

Como acertadamente doutrina Beling, la vida juridica no puede soportar uma renovación continua del proceso, como ocurreria sin la fuerza material de la cosa juzgada. A instabilidade da ordem jurídica e a insegurança a que ficariam sujeitos os indivíduos transformar-se-iam num mare magnum de incertezas e apreensões, e a paz e a tranqüilidade que devem reinar entre os homens seriam transformadas num inferno de martírio”. (1)

Inicialmente, é necessário estabelecer os marcos teóricos que delimitam a coisa julgada. Para a caracterização da res judicata é necessário que “haja identidade de fato, isto é, da causa petendi, da razão do pedido, daquele quid em razão do qual se instaurou a relação processual; em segundo lugar, urge haver identidade do réu, é preciso que a pessoa contra quem se propõe a nova ação seja a mesma contra quem foi ela proposta anteriormente”.(2)

Diante de classificações jurídicas distintas nos processos em que se apura a existência de identidade de causa de pedir e identidade de réu é possível o reconhecimento da coisa julgada?A classificação jurídica dada ao fato na denúncia nunca foi uma baliza segura para as questões processuais penais. Decorrem daí as inúmeras decisões que afirmam a precariedade da adequação típica promovida pelo Ministério Público na denúncia e que consagraram o bordão jurisprudencial que “o réu se defende dos fatos que lhe são imputados, e não do tipo penal capitulado, ainda que equivocadamente, na denúncia”.(3) Essa interpretação tem raiz no Código de Processo Penal, que em seu artigo 383 autoriza o magistrado a “dar ao fato definição jurídica diversa da que constar da queixa ou da denúncia”.

Sobre a irrelevância da identidade de qualificação jurídica dada ao fato na denúncia para a verificação da coisa julgada, o mesmo Tourinho Filho é categórico: “Esse fato de que tratamos outro não é senão o fato material imputado ao réu. Pouco importa que o autor lhe dê nova qualificação jurídico-penal. Se for o mesmo e se se tratar do mesmo réu poderá ser oposta a exceptio. E Fenech arremata: cualquiera que sea la calificación jurídica del hecho ni por la cantidad de la pena pedida, sino por la identidad de un acaecer histórico individualizado en su unidad natural y no em la jurídico-penal (Derecho, cit. v. 2, p. 545). Assim, se alguém foi definitivamente julgado por crime de homicídio, não poderá amanhã, depois de transitar em julgado a sentença que o absolveu, entender o Ministério Público que o crime que ele havia praticado não foi homicídio, mas lesão corporal seguida de morte, ou latrocínio e pretender instaurar contra ele novo processo”.(4)

Isto porque, como ensina o mestre Frederico Marques, “a acusação contém pedido condenatório não específico”, pois, ao “descrever o fato criminoso com todas as suas circunstâncias”, o acusador “delimita o seu pedido”, mas esse pedido é um “verdadeiro pedido genérico” porque, quanto ao tipo, “o juiz pode alterar essa qualificação in pejus ou in melius, ficando vinculado para julgar apenas ao fato criminoso tal como foi descrito”.(5)

O respeitadíssimo Frederico Marques alerta que “esse fato principal outro não é que o fato material imputado ao réu, independentemente de sua qualificação jurídico-penal”.(7)

Também no Direito comparado tal princípio é afirmado. Montero Aroca esclarece que “no es dudosa que a distintas calificaciones jurídicas no se corresponden objetos procesales penales diferentes, pues si así fuera después de un primer proceso con sentencia absolutoria podrían los acusadores intentar un segundo proceso sobre el mismo hecho pero calificándolo jurídicamente de modo distinto, y sin que en este segundo pudiera oponerse o estimarse la excepción de cosa juzgada”.(8)

Andrés Oliva Santos et alli registram que, em sede de coisa julgada, reside no “fato” o objeto da ação penal a ser considerado: “al tratar del objeto procesal a efectos de cosa juzgada o litispendencia penales se muestra con especial claridade que ha de ser directamente un hecho, una conducta humana, lo que constituya el objeto del proceso penal (un factum y no un crimen). De lo contrario, la litispendencia y la cosa juzgada quedarían inutilizadas con sólo calificar jurídicamente de forma diferente un mismo hecho”.(9)

Essa interpretação é tão consagrada que, como adverte a hoje Ministra Maria Thereza R. Assis Moura, o último projeto de Código de Processo Penal em trâmite no Congresso Nacional prevê em seu artigo 368, § 2.º, que uma pessoa não poderá “ser novamente acusada em razão dos mesmos fatos contidos na imputação, ainda que sob qualificação diferente”.(10)

Também a jurisprudência que cuida da matéria é firme em afirmar que a nova classificação típica em nada influi para o reconhecimento da coisa julgada. Por toda a jurisprudência, afirmou o Supremo Tribunal Federal: “inexistirá, contudo, essa possibilidade, se o Poder Judiciário, ao reconhecer consumada a prescrição penal, houver declarado extinta a punibilidade do indiciado/denunciado, pois, em tal caso, esse ato decisório revestir-se-á da autoridade da coisa julgada em sentido material, inviabilizando, em conseqüência, o ulterior ajuizamento (ou prosseguimento) de ação penal contra aquele já beneficiado por tal decisão, ainda que o Ministério Público, agindo por intermédio de novo representante e mediante reinterpretação e nova qualificação dos mesmos fatos, chegue a conclusão diversa daquela que motivou o seu anterior pleito de extinção da punibilidade”.(11)

Portanto, pouco importa que haja divergência de classificação jurídica entre as ações penais. Se o mesmo fato já foi solucionado de maneira definitiva, se houve a prolação de sentença de mérito transitada em julgado, não é a divergência entre os tipos penais que lastreiam as ações penais que impediriam o reconhecimento da coisa julgada. A solução para tais casos é aquela preconizada pelo Supremo Tribunal Federal: “como salienta Eduardo Espínola Filho (Código de Processo Penal brasileiro anotado, vol. II, 5ª ed., nº 264, p. 301, Editora Rio, Rio de Janeiro, sem data), em qualquer fase esteja a ação penal, se o juiz verificar que o fato principal foi solucionado por sentença transitada em julgado, no seu próprio juízo, ou em outro, paralisará definitivamente aquele processo, fazendo apensar os respectivos autos aos da outra causa, ou, para isso, os remetendo ao juízo, onde esta ocorreu. O que implica dizer que, em respeito à coisa julgada, se extingue a ação penal em curso”.(12)

Notas
(1) Fernando da Costa Tourinho Filho. Código de Processo Penal Comentado, São Paulo: Ed. Saraiva, 1999, vol. 1, p. 291.
(2) Idem, p. 290.
(3) STF, HC nº 85.496/SC, rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 08.set.06, p. 42.
(4) Op. cit., p. 291.
(5) José Frederico Marques. Elementos de Direito Processual Penal. Campinas: Bookseller, 1998, v. II, p. 152.
(6) Diogo Rudge Malan. A Sentença Incongruente no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 119.
(7) José Frederico Marques. Elementos de Direito Processual Penal. Campinas: Bookseller, 1998, v. III, p. 93.
(8) Juan Montero Aroca. Principios del Proceso Penal: Una Explicación Baseada en la Razón. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1997, p. 120.
(9) Andrés Oliva Santos et alli. Derecho Procesal Penal. Madrid: Editorial Centro de Estudos Ramón Areces, 2002, p. 196.
(10) Maria Thereza R. Assis Moura. Código de Processo Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. São Paulo: RT, 2004, v. 2, p. 1374.
(11) STF, HC nº 84.253/RO, rel. Min. Celso de Mello, DJ 17.dez.2004, p. 71.
(12) STF, HC nº 77.909/DF, rel. Min. Moreira Alves, DJ 12.mar.99, p. 4.